Arquivo Pessoal

Elio Ferreira

Nasceu em Floriano, PI. Professor de Literatura na UESPI. Doutor em Letras; Pós-Doutor em Estudos Literários. Publicou mais de trinta livros.

A ROLINHA E A RAPOSA DE ELIO FERREIRA:

A RESISTÊNCIA DE UM GRIÔ PIAUIENSE

A ROLINHA E A RAPOSA DE ELIO FERREIRA:

A RESISTÊNCIA DE UM GRIÔ PIAUIENSE

Sebastião Alves Teixeira Lopes[1] (UFPI)

            Com A rolinha e a raposa (2022), o poeta Elio Ferreira inicia uma nova vertente de sua já vasta produção literária, agora voltando-se para o público infantil. Trata-se de uma fábula resgatada de suas memórias de infância, que agora é publicada pela Abracadabra Edições em forma de livro ilustrado, com projeto gráfico, ilustração e diagramação de (Antônio de Pádua) Amaral.

           

Foto: Reprodução436456

A fábula aborda vários temas existenciais. Apresenta uma difícil decisão, daquelas que dilaceram a alma pelo resto da vida, a ecoar A escolha de Sofia (1979), personagem principal do romance de William Styron, adaptado para o cinema em 1982 sob direção Alan J. Pakula, contando com Meryl Streep como a inconsolável Sophie Zawistowski, atuação que venceria o Oscar de melhor atriz no ano de 1983. Trata também de sujeitos que se ajudam mutuamente em momentos de adversidade, ressaltando a necessidade de laços comunitários. Encena ainda a necessidade de jogo de cintura face às opressões da vida, colocando a sagacidade como virtude necessária para sobreviver. A rolinha e a raposa exalta a capacidade de resistência do subalternizado, ensinando-nos que é possível burlar a prepotência e violência do poder.

           

Foto: Reprodução4633

Elio explica que na infância, sob a copa de antigas figueiras, ouvia histórias contadas pelos mais velhos, situação que reverbera em solo piauiense a tradição dos griôs africanos, poetas, músicos, cantores e contadores de histórias, a transmitir às novas gerações a religiosidade, as tradições, as lendas e conhecimentos ancestrais que constituíam a cultura do povo. A história da rolinha e da raposa, em particular, ouviu de Seu João Batista, seu vizinho na Rua do Ouro, hoje Rua Fernando Marques, bairro Caixa d’Água, então periferia de Floriano no Piauí, cidade natal do poeta.

            Conceição Evaristo (2005, 2018, s/p) fala da importância da palavra ouvida para a literatura que produz, quando afirma que “a oralidade me deu o encantamento pela palavra. Eu tenho dito que escritor é um fofoqueiro. Eu adoro escutar histórias. Hoje, então, com o celular, que as pessoas ficam contando coisas, eu sempre fico muito ligada. A oralidade me preparou essa sensibilidade para colher os fatos do mundo”. É justamente dessa interseção entre oralidade e memória que chega ao público A rolinha e a raposa, fábula inicial de Elio Ferreira, que remonta às lembranças das histórias contadas pelos mais velhos da comunidade onde morava em Floriano (PI), na década de 1960.

     

Foto: Reprodução5477

       Diferentemente da sociedade de consumo, centrada no mito da eterna juventude, as comunidades tradicionais valorizam os mais velhos. Os anciões, homens e mulheres, são percebidos como refúgio da ancestralidade e salvaguarda da memória, valorizando ao mesmo tempo o patrimônio cultural herdado e o acúmulo de vivências experienciadas. Os velhos e velhas da comunidade tornam-se guias para as novas gerações, em fluxo que une ao mesmo tempo o passado dos ancestrais, o acúmulo do vivido que se manifesta no presente e o futuro marcado pela presença das próximas gerações.

            De forma paradigmática, pode-se perceber esse fluxo na figura do poeta Elio Ferreira, que quando criança ouvia histórias contadas pelos mais velhos, até tornar-se ele próprio um menestrel de tantos versos, através de uma sólida carreira literária, que agora se volta às origens, às suas memórias mais remotas e, porque não dizer, mais afetivas. Se um dia a criança Elio Ferreira ouvi a fábula da rolinha e da raposa de Seu João Batista, o pai/tio Elio Ferreira a conta para seus filhos e sobrinhos, ocupando ele próprio o lugar do velho griô.

      

Foto: Reprodução4633456

      Esse fluxo contínuo de ouvir histórias e tornar-se contador dessas histórias de metaforicamente representar bem o processo de construção de Elio Ferreira enquanto poeta, demonstrando quão vinculado se encontra às suas origens negras e indígenas. Vale ressaltar, como esclarece o próprio Elio Ferreira, que a fábula da rolinha e da raposa era usada como narrativa de iniciação, uma vez que se exigia das crianças que também contassem histórias, pelo menos as mais simples, a exemplo dessa breve narrativa que agora o poeta divide com o público em geral. Se na adolescência o jovem Elio Ferreira foi preparado pelo pai para o ofício de ferreiro, dedicou-se mesmo à forja das palavras, sem deixar de trazer consigo o ofício da família cravado no próprio nome.

            Desde a África a figura dos griôs são importantes para a resistência contra a colonização. Como depositários dos conhecimentos ancestrais, verdadeiras bibliotecas vivas do povo, esses velhos e velhas foram importantes na resistência cultural face o processo de destruição epistêmica promovida pela colonização. Também no Brasil, os griôs tornam-se baluartes da resistência, seja à escravização promovida no período colonial, seja ao racismo estrutural que se faz presente até os dias de hoje. Preservar a cultura e valores dessas comunidades marca a resiliência em existir, apesar de todas as adversidades. Elio Ferreira faz parte dessa resistência ao racismo estrutural da sociedade brasileira, em luta constante por autoafirmação enquanto sujeitos negros e indígenas, sendo que A rolinha e a raposa bem representa essa resistência, seja no enredo ou em função do contexto social em que circulava, transmitida oralmente pelos mais velhos.

         

Foto: Reproduçãosdfasf

   Na capa da edição que agora chega ao público pela Abracadabra Edições, é anunciado: Fábula de tradições africanas e indígenas, volume I. Espera-se que cheguem logo os próximos volumes, com novas histórias, pois trata-se de um legado cultural vasto e importante para a formação social do Piauí. Espera-se que em breve e de forma constante Elio Ferreira retorne à sombra das velhas figueiras do seu tempo de meninice e de lá nos traga mais histórias de assombração, encantamento, e mistérios que tanto marcaram a sua infância.

REFERÊNCIAS

EVARISTO, Conceição. ‘Falar sobre preconceito racial no Brasil é derrubar o mito de democracia racial’. Sul21, 2018. Disponível em: https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2018/05/conceicao-evaristo-falar-sobre-preconceito-racial-no-brasil-e-derrubar-o-mito-de-democracia-racial/. Acesso em: 03 nov. 2022.

FERREIRA, Elio. A rolinha e a raposa: fábula do Piauí de tradições africanas e indígenas. [Projeto gráfico, ilustração e diagramação (Antônio de Pádua) Amaral]. Abracadabra Edições/Ed. do Autor: Teresina-PI, 2022.

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[1] Professor Titular da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Possui doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutorado na Universidade de Winnipeg (Canadá) e pós-doutorado na Universidade de Londres/School of Oriental and African Studies (SOAS). Email: [email protected].

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