Arquivo Pessoal

Elio Ferreira

Nasceu em Floriano, PI. Professor de Literatura na UESPI. Doutor em Letras; Pós-Doutor em Estudos Literários. Publicou mais de trinta livros.

PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE FLORIANO TORNA-SE ESCOMBROS.

“O SOBRADO DA CASA DO MICHEL” - O MAIS CHARMOSO DE FLORIANO – DESMORONA, TORNA-SE ESCOMBRO DA MEMÓRI

PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE FLORIANO TORNA-SE ESCOMBROS.

“O SOBRADO DA CASA DO MICHEL” - O MAIS CHARMOSO DE FLORIANO – DESMORONA, TORNA-SE ESCOMBRO DA MEMÓRIA SÍRIO-LIBANÊS.

Por Elio Ferreira

Foto: Reprodução/TV ClubeSobrado da Casa do Michel antes do desabamento. Floriano, Piauí
Sobrado da Casa do Michel antes do desabamento. Floriano, Piauí

”Oh, jardineira, por que estás tão triste?

Mas o que foi que te aconteceu?”

(Benedito Lacerda; Humberto Porto)?

       Queridos leitores e leitoras, inicio a história do fatídico acontecimento com os primeiros versos da marchinha da tradição carnavalesca de Floriano. Digamos a música mais tocada nas memoráveis festas noturnas nos carnavais dos clubes da cidade. Não se trata de saudosismo, de unicamente se “apegar às coisas velhas”. Estamos perdendo abruptamente a nossa memória e a diversidade identitária. Além do potencial econômico e turístico relacionado ao patrimônio arquitetônico da cidade que pode ser transformado em fonte de lazer, conhecimento e renda de capital. O prédio do antigo Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, hoje o Terminal Turístico de Floriano, encontra-se de portas fechadas em via de deterioração. O prédio do Hospital São Vicente de Paula, o primeiro hospital público de Floriano, onde posteriormente funcionaram a Cadeia e a Delegacia, também se encontra em situação crítica de conservação, o teto caiu. O Sobrado da Casa do Michel, o mais charmoso da cidade, desabou há quinze dias atrás e, caso nenhuma medida for tomada pela família dos herdeiros de Salomão Mazuad, o poder público municipal e setores competentes, no sentido da reconstrução, este será mais um episódio protagonista do cenário de escombros e ruínas do Patrimônio Arquitetônico e da História da Fundação de Floriano. Há também outros prédios e casarões do centro histórico da cidade, que merecem a mesma atenção e cuidado de todos, como o antigo casarão da Loja do Said, na esquina da rua São Pedro com a Fernando Marques e muitos outros.

       Ao tomar conhecimento do desabamento do antigo Sobrado da Casa do Michel, fiquei muito triste e sensibilizado, como se houvera perdido algo de muito precioso para mim e, na verdade o é, não unicamente para mim, mas para muitos florianenses, pessoas que ali viveram ou conheceram no passado o mais charmoso e belo sobrado árabe da cidade. A notícia do desabamento me pegou de surpresa. Foi como se houvessem amputado alguma parte do meu corpo. Uma sensação estranha e dolorida, de quem perdera um ente, uma pessoa amiga. O sobrado era muito bonito e, à noite, inspirava uma certa magia, criando uma atmosfera imaginária de lugares distantes e suspenso no ar. No térreo do sobrado, lembro as letras prateadas do nome Casa do Michel, que tremulavam à luz do sol e da lua. Lamento não ter conseguido localizar uma foto dos anos 1950/1960, quando o prédio se encontrava em perfeito estado de conservação. Mas é possível reconstruí-lo. Isso depende da boa vontade da cidade, da família proprietária, dos empresários e, sobretudo, da Prefeitura. O amigo e arquiteto Nilson Coelho, dedicado conhecedor da memória e do patrimônio arquitetônico de Floriano, falou-me da possibilidade da reconstrução fidedigna do sobrado. Embora a forma inadequada pela qual foram retirados os escombros, possa dificultar a reconstituição da estrutura original do prédio.

        Desde alguns anos, o estado de abandono e a estrutura deplorável do sobrado eram premonitórias, assim como outros casarões da antiga Rua dos Árabes, nome antigo lembrado pelo historiador Cristóvão Augusto, da atual Rua São Pedro. – Infelizmente, o prédio desmoronou como se previa. Qualquer transeunte podia perceber o episódio fatídico. Em 2019, a última vez em que ali estive presente, senti-me um tanto deprimido com a atmosfera de decadência daquele quarteirão de rua, que fora cartão postal e centro do progresso comercial da cidade. Segundo o arquiteto Nilson Coelho, o tráfego de veículo por aquele trecho da rua teria antecipado a tragédia. Isso é uma alerta para que a Prefeitura tome providências urgentes para que se evite o desabamento de outros prédios ali existentes. O fato é que estamos mais pobres de história, memória e identidades. Mas como recuperar parte do que se perdeu?

       A Rua São Pedro fora o centro comercial de maior concentração de pessoas em Floriano. O quarteirão do sobrado era predominantemente ocupado pelas lojas dos comerciantes sírio-libaneses, que migraram para Floriano. Não havia como passar, à noitinha, defronte àquele pedaço de rua sem olhar para o sobrado, sem ser intimidado ou atraído pela sua beleza, luzes e encantamento, pelo seu charme de algo que nos inspira ao imaginário tal qual os contos das Mil e Uma Noites, em especial, a História do rei Xeriar e da bela Xerezade. Embora aquilo estivesse um tanto distante da minha realidade de menino da periferia, da Rua do Ouro, não parecia tão distante das histórias contadas pelo meu pai, minhas tias, pessoas mais velhas, pois as narrativas contadas por eles, sob a luz do luar ou o embalar da rede, eram povoadas de fadas, reinos, reis, rainhas, príncipes, princesa, palácios encantados. Aquele pequeno trecho de rua ou quarteirão fica localizado entre as ruas Fernando Marques e Fernando Drumond. Na esquina desta rua com a São Pedro, nos anos 1960, já funcionava o Cine Itapuã; salvo engano, o mais antigo de Floriano. No térreo do sobrado, era a Casa do Michel, o armarinho mais “surtido” ou “chique” da cidade, como queiram, onde se vendia de tudo.

Foto: Reprodução / G1Sobrado da Casa do Michel após o desabamento. Floriano, Piauí.
Sobrado da Casa do Michel após o desabamento. Floriano, Piauí.

ENTREVISTA COM “NILSON COELHO” SOBRE A RECONSTRUÇÃO DO SOBRADO DA CASA DO MICHEL

ELIO – Bom dia, Nilson! Qual seria o meio mais apropriado para se viabilizar a reconstrução do Sobrado do Michel? O IPHAN reserva alguma pauta orçamentária para a reconstrução de prédios de particulares?

NILSON – Elio, bom dia! O IPHAN só cuida de bens de interesse nacional, de interesse federal. Seria necessária uma justificativa de que o prédio tenha uma importância nacional. O que eles não considerariam. Além disso para um assunto desse entrar na pauta do IPHAN seria muito difícil. O Sudeste ocupa a pauta do IPHAN toda. O Conselho do IPHAN se reúne de uma a duas vezes por dia. Os conselheiros são grandes intelectuais. É muito complicado.

ELIO – E quanto à execução do Projeto de Tombamento e os recursos para a reconstrução do Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara (O Terminal Turístico) de que modo isso foi possível?

NILSON – O Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara entrou por conta da questão do negro, de ser uma escola para o negro. E pela ajuda muito grande do meu professor, que é da área. Eu acho que ele ajudou a colocar na pauta do IPHAN e aprovar o nosso projeto para a reconstrução do prédio do Estabelecimento. Mas mesmo assim, durou muito tempo.

ELIO – De certo. Deve ter sido em razão da escola de ofícios e de Ensino Primário para os filhos de escravizados das Fazendas Nacionais, amparados pela Lei do Ventre Livre de 1871. - Você tem feito algum contado com a família dos proprietários do “Sobrado da Casa do Michel”, - os descendentes de Salomão Mazuad?

NILSON – O responsável direto pelo prédio é Felipe Salha. Ele é meu amigo. Não sei se você se lembra dele. Ele é mais novo do que a gente. Mora em Teresina. O ano passado, eu falei com o Felipe, porque o Fábio Novo aventou a possibilidade de restaurar e adquirir o prédio através de um terceiro. Eu falei com o Felipe e ele me falou o seguinte - “O interesse da família é esse. Passar o prédio para o poder público, porque estamos com medo do prédio cair”. Eu fiz o contato entre o Felipe e o Fábio Novo, mas as coisas não andaram.

ELIO – Na época, a Prefeitura manifestou algum interesse, no que diz respeito à restauração e preservação do prédio, para que evitasse o desmoronamento?

NILSON – Na verdade a Prefeitura nunca teve interesse. Não manifestou nenhum interesse pelo patrimônio. O contato e a negociação com a família não seria difícil. Seria muito fácil. Depende do interesse da Prefeitura. 

ELIO - E para a reconstrução do Sobrado do Michel, qual seria o caminho mais rápido?

NILSON – Então, era melhor uma ação em nível municipal. Seria mais rápido e depende muito da boa vontade do Prefeito de Floriano para se realizar qualquer coisa sobre o prédio.

ELIO – Há alguma mobilização nesse sentido?

NILSON – A cidade está muito desmobilizada do ponto de vista da reivindicação cultural. O que as pessoas querem mesmo é um cargo. Um emprego na Prefeitura. Algum benefício das leis de incentivo. Não é mais como antigamente como na época do Boi de Né Preto [nos anos 1985 a 1990, na época do programa Quintal Aberto e o Movimento Cultural de Floriano], que nós fazíamos por amor, no peito e na raça. A cidade está totalmente desmobilizada. O que é uma pena. Agora em final de mandato, o Prefeito fica de mãos amarradas por conta da legislação eleitoral. A gestão parece não ter muita compreensão da importância do patrimônio arquitetônico. Agora, mobilizar as pessoas com matérias do tipo que você está fazendo é muito importante, porque no dia do desabamento a cidade ficou muito sensibilizada. Mas como hoje, tudo é muito rápido, muito líquido, dois dias depois ninguém lembra mais.

ELIO – Qual seria o meio mais apropriado e rápido para a desapropriação e reconstrução do prédio?

NILSON - Eu acho, que essa conversa com a família, seria a parte mais fácil. O problema é como comprar aquele prédio. Não sei se a Prefeitura pode comprar diretamente ou se teria um instrumento jurídico de desapropriação. O Fábio Novo faz essas reformas assim, ele pega uma instituição, já existente na cidade, como a do Crispim, e arruma as doações para essa instituição. E a mesma instituição executa o trabalho. Aí não precisa passar pelo Estado, porque passando pelo Estado é uma demora enorme. Tem de passar por certas restrições da legislação. Era assim, que o Fábio queria fazer. Mas só que o Fábio não tem boa votação em Floriano e tudo depende muito dessas coisas. Também não há um grupo, que reivindicasse isso. O Fábio é até muito disposto, quanto a isso. Teve uma época que o Corpo de Bombeiro interditou a Maria Bonita, que ficou parada durante muito deteriorada. Houve a mobilização dos artistas através de uma reunião na Maria Bonita. Eu fui convidado para a reunião pela Deusa, uma Historiadora, que morava no Rio Grande do Sul. Eu fui à reunião e, ao sair de lá, falei com o Fábio Novo pelo facebook, sem nunca ter falado com ele antes. Ele me disse, que estava em Bom Jesus, e me disse que poderíamos jantar em Floriano. Então, ele acatou a reivindicação e recuperou a Maria Bonita, que estava a dois anos fechada. É muito isso, reivindicar até se cansarem da gente e resolverem o problema.

ELIO – Hoje, uma das pautas importantes que está acontecendo é a revitalização do centro histórico da cidade, que tem se tornado ponto turístico e fonte de renda para a população e a administração municipal. Como é sabido, o turismo tem se tornado como um dos meios mais rentáveis, em se tratando do giro de capital. A exemplo disso, sãos as cidades como Paris, Nova Iorque, Londres, Amsterdan, Lisboa, Porto (Portugal), Cusco (Peru), Salvador, Fortaleza, Oeiras, outras centenas de cidades brasileiras e estrangeiras. Floriano também pode, deve e tem como desenvolver o seu potencial turístico. Para isso a sociedade florianense precisa assumir essa questão da preservação do patrimônio arquitetônico e histórico da cidade, especialmente a partir da inciativa e o apoio da Prefeitura Municipal, Câmara dos Vereadores, empresários, Colônia Árabe, grupos organizados e a população em geral.

Foto: Pinterest / Rami JamesSobrado da cidade de Beirute. Beirute.
Sobrado da cidade de Beirute. Beirute.

HISTÓRIA DA BELA IZABEL E A CONSTRUÇÃO DO SOBRADO MAIS CHARMOSO DA CIDADE PELO ESPOSO SALOMÃO MAZUAD

       Segundo me contou o historiador Cristóvão Augusto, o Sobrado foi construído provavelmente por volta dos anos 1930/1940 pelo Sr. Salomão Mazuad, um dos primeiros migrantes sírio-libanês a residir em Floriano. E também um dos mais afortunados comerciantes dentre os seus patrícios. Então, proprietário de uma grande loja da cidade do ramo de material de construção, que funcionava na esquina da rua São Pedro com a Fernando Drumond, com algumas portas de frente para a Igreja São Pedro de Alcântara e outras para a rua São Pedro. Contam que a Sra. Izabel Mazuad, esposa do Sr. Salomão Mazuad, era uma mulher muito bonita, de uma beleza encantadora. Isso é o que se houve falar de quem a conheceu. Sua invejável beleza e elegância causava admiração e deslumbramento, mesmo entre as mulheres. No entanto, o perfil da mulher emancipada de uma metrópole como Beirute, com ideias avançadas para uma pequena cidade do interior do Piauí, como Floriano; de certo, também deve ter causado algum sentimento de censura entre as pessoas mais recatadas ou conservadoras do lugar. O fato é que o esposo, certamente para atender o refinado gosto e cativar o amor da jovem e bela mulher e esposa, construiu o mais bonito e charmoso Sobrado árabe da cidade, cuja fachada arquitetônica parece assemelhar-se às fachadas dos sobrados de Beirute. Naquele prédio, o casal viveu durante alguns anos, até a Sra. Izabel retornar a Beirute. Quando conheci o Sr. Salomão, ele já se tornara um homem idoso, quanto à senhora Izabel, sei apenas de ouvi falar da sua encantadora beleza e elegância. A história da edificação do Sobrado da Casa do Michel não sei porque razão ou sentimento, lembra-me de algum modo os contos de As mil e uma noites, em especial, A história do rei Xeriar e da bela Xerezade.

ELIO FERREIRA

Teresina, 24 de agosto de 2020

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