Arquivo Pessoal

Elio Ferreira

Nasceu em Floriano, PI. Professor de Literatura na UESPI. Doutor em Letras; Pós-Doutor em Estudos Literários. Publicou mais de trinta livros.

‘ESPERANÇA GARCIA’ E A 'CARTA' QUE MUDOU A HISTÓRIA DO PIAUÍ

‘ESPERANÇA GARCIA’ E A ‘CARTA’ QUE MUDOU A HISTÓRIA DA ESCRAVATURA NO PIAUÍ E NO BRASIL.

‘ESPERANÇA GARCIA’ E A ‘CARTA’, ESCRITA POR ELA MESMA, QUE MUDOU A HISTÓRIA DA ESCRAVATURA NO PIAUÍ E NO BRASIL.

A CARTA DE 6 DE SETEMBRO DE 1770 E O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO PIAUÍ.

Eu Sou hua escrava de V.S. dadministração do Cap.am

Ant° Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am Lá foi

adeministrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia

co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella

passo mto mal.

A Primeira hé q. ha grandes trovadas de pancadas

enhum Filho meu sendo huã criança q. lhe fez estrair sangue

pella boca, em mim não poço esplicar q Sou hu colcham

de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada;

por mezericordia de Ds esCapei.

A segunda estou eu e mais minhas parceiras por

confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.

                   Pello q Peço a V.S. pello amor de Ds. e do

Seu Valim.to  ponha aos olhos em mim ordinando digo

mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle m. tirou  p.a 

eu viver com meu marido e Batizar minha Filha

 de V.Sa. sua escrava

EsPeranCa Garcia

Foto: Paulo GutembergTexto original da Carta. Foto cedida pelo autor, Teresina, 2015.
Texto original da Carta. Foto cedida pelo autor, Teresina, 2015.

Queridas leitoras e leitores. 6 de setembro é o Dia da Consciência Negra no Piauí. Suponho que muitos de vocês já sabem ou ouviram falar acerca do acontecimento, do fato histórico e social que motivou a celebração dessa data. Estou me referindo a Esperança Garcia, uma mulher negra e escravizada, que escreveu a “Carta” que mudou a História da escravidão no Piauí. Por que não dizer também no Brasil? Trata-se do primeiro documento reivindicatório do Brasil, escrito por um escravizado. O presente artigo faz parte de uma série de escritos sobre Esperança e a sua Carta, que venho publicando nos últimos quinze anos em livros autorais, em antologias, revistas, sites, anais de congressos acadêmicos e fanzines. As palestras foram dezenas em universidades, escolas, espaços sociais e de cultura, no Piauí e em universidades de diferentes estados brasileiros. Quero também compartilhar com todos/as que, entre os anos de 2016 a 2019, tive a honrosa alegria de levar os feitos de Esperança além das fronteiras do país, na qualidade de professor palestrante da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) durante Encontros acadêmicos nas seguintes universidades: Harvard University, Cambridge, EUA; University of California, Los Angeles (ou UCLA), EUA; Pontificia Universidad Católica del Perú, Lima, Peru; Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. A narrativa autobiográfica da nossa heroína/protagonista tem ensinado a muitos, inclusive a mim, como fora humilhante e cruel a escravatura. Vejam, pois, o texto a seguir. Boa leitura.

A Carta de 6 de setembro de 1770, de Esperança Garcia, foi endereçada ao Governador da Capitania de São José do Piauí (MOTT, 1985, 2010), Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, uma “inusitada reclamação” (MOURA, 2004) por se tratar de uma “escrava” que se dirige à principal autoridade do Piauí colonial setecentista. Do ponto de vista literário e como texto precursor, a Carta de Esperança representa para a literatura afro-brasileira, o mesmo que a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) representa para o cânon euro-ocidental na literatura brasileira. A epístola em estudo foi escrita dezenove anos antes da Revolução Francesa. É certamente um dos registros escritos mais antigos da escravidão no Brasil, escrito pelo próprio escravizado, no nosso caso uma mulher afrodescendente e cativa, Esperança Garcia, o que confere à narrativa epistolar citada acima o status da escritura de uma gênese, ou seja, da formação do cânon literário afro-brasileiro. A narradora se apropria do antigo modelo de petição da segunda metade do século XVIII, para assentar nesse território simbólico da escrita as vozes da narrativa autobiográfica ou da crônica pessoal e comunitária do sujeito afrodescendente num espaço inóspito, a escravidão. Essas vozes falam da dor humana, da luta e do desespero de uma mulher escravizada, que fala em nome de si mesma, dos filhos, do marido e dos parceiros do cativeiro, assumindo o lugar de sua própria fala e da fala do seu grupo. O relato escrito por Esperança Garcia envolve a uma rede de acusações e denúncias o Administrador das fazendas de gado da Coroa de Portugal no Piauí. A eloquência e a dramaticidade da epístola comprometem estrategicamente a reputação do capitão Antônio Vieira do Couto perante o Governador da Capitania.

Pelo que se consta na crônica da escravidão no Brasil, poucos cativos sabiam ler ou escrever, mas há as exceções como a escrava Esperança Garcia (1751?), o poeta afro-baiano Luiz Gama (1830–1882), Rosa Egipcíaca (1719? - ?). Esta, segundo afirma Luiz Mott, seria a autora do “mais antigo manuscrito autografado por um ex-escravo em nosso país data de 1752 – e traz a assinatura de nossa biografada: ROSA MARIA EGPICÍACA DA VERA CRUZ” (1993, p.8). Isto é, se não considerarmos a carta de Henrique Dias (1650), escravo alforriado e soldado, enviada a D. João IV, Rei de Portugal, e outras raridades, que podem ser considerados casos excepcionais de quem aprendeu a ler ainda no cativeiro. Na segunda metade do século XIX, registra-se a publicação do livro Uma interessante biografia narrativa de Mahommah G. Baquaqua (1854), de Mahommah G. Baquaqua, um africano que, uma vez liberto da escravidão por meio de fuga em viagem a New York, em 1847, anos mais tarde relata suas experiências de escravizado no Brasil durante os anos de 1845 a 1847. Os sublevados nagôs e hauçás (muitos deles alforriados) do Levante dos Malês, em Salvador de 1835, caracterizam um caso especial de escravos alfabetizados coletivamente, que aprendiam a ler pelo Alcorão sob a orientação dos alufás, nome dado aos sacerdotes mulçumanos. Isso foi o que se pôde constatar nas investigações policiais, uma vez frustrado e derrotado o levante desses afrodescendentes islamizados em armas contra as forças do governo baiano (REIS, 2004, 1987). No entanto, registros descobertos recentemente sobre o Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, criado por decreto imperial em 1873, que dera origem à cidade de Floriano, no Estado do Piauí, têm revelado alguns dados importantes acerca da existência de uma escola de ofícios e de Ensino Primário para os filhos de escravizados das Fazendas Nacionais, que foram admitidos em função da Lei do Ventre Livre de 1871.

A Lei Nº 5.046 de 07 de janeiro de 1999 instituiu o Dia Estadual da Consciência
Negra no Piauí. O projeto teve a autoria do Deputado Estadual Olavo Rebelo, obtendo o
apoio da mulher negra e militante do movimento negro e então Deputada Estadual,
Francisca Trindade. Esta falecera precocemente, poucos anos depois, em efetivo
exercício no seu primeiro mandato de Deputado Federal. No dia 06 de setembro do
mesmo ano de 1999, realizar-se-ia a primeira e única sessão solene para a execução da Lei 5.046/1999, que estabelece no

Art. 4º - Fica assegurado ao Movimento de Militância da Consciência
Negra no Piauí, através das suas entidades de representação, participar
de forma efetiva da sessão solene que a Assembleia Legislativa do
Estado do Piauí realizará, anualmente, na forma estabelecida no seu
regimento interno, alusiva ao Dia Estadual da Consciência Negra. (Citado por MACHADO, 1999, p.3)


          A Lei ainda em vigor foi aprovada pelos Deputados do Piauí e sancionada pelo Governador, este na ocasião Sua Excelência, o Sr. Wellington Dias (PT). O expediente atendia às reivindicações das diversas entidades negras piauienses representadas naquela sessão do Legislativo, na qual eu estivera presente como membro do Movimento Hip Hop no Piauí e cidadão comum, engajado às questões que dizem respeito ao negro.

Hoje, a Carta de Esperança tornou-se um paradigma de resistência, como a luta em favor da equidade de direitos entre negros e brancos e contra o preconceito racial; a construção da identidade e da autoestima de homens e mulheres afro-brasileiros no Piauí, valores estes evocados e reivindicados por essa população afrodescendente, através da ação de grupos organizados, durante os debates sobre as políticas públicas e as ações afirmativas. A partir de 2017, a história de Esperança Garcia despertara significativo interesse junto à população piauiense de um modo geral, tornando-se reconhecida por instituições governamentais e jurídicas através de homenagens como a criação do Memorial Esperança Garcia e sua condecoração com o título simbólico de Advogada pela OAB – Piauí.

A Carta petição de Esperança faz uma fotografia real da experiência humana de homens e mulheres africanos e afrodescendentes que desceram aos infernos da escravidão. O relato chega ao nosso conhecimento a partir da experiência real e do olhar de uma mulher afro-brasileira que, mesmo na condição de cativa, utiliza-se da escrita para se defender da violência do sistema escravagista. Esse documento é de suma importância pelo que representa como resistência escrava e por ser uma peça valiosa, “uma carta manuscrita” pelo próprio punho de uma escrava, cujo valor histórico é inestimável, significando uma raridade na crônica da escravatura no Brasil colonial, principalmente por se tratar de um documento escrito por uma mulher escravizada, que ousa escrever diretamente ao Governador da Capitania do Piauí, para requerer direitos e apresentar suas reclamações contra o administrador das fazendas do Fisco real. Isso numa época em que poucos tinham acesso ao ensino das primeiras letras, restrito à elite abastada e excepcionalmente à população masculina. O manuscrito de Esperança foi localizado no Arquivo Público do Piauí e fora publicado em livro pela primeira vez através do historiador Luiz Mott. Entre outras considerações, o pesquisador assegura que:

"A existência de uma mulher escrava alfabetizada sugere-nos quem sabe um aspecto peculiar que assumiu a escravidão na zona pecuarista do sertão do Piauí [...]: encontramos documentos que se referiam a escravos que possuíam bois, cavalos, que deixavam herança ao morrer, que enviavam algumas cabeças de gado para serem vendidas em distantes feiras de animais. Escravos que requeriam ao Governador contra algum proprietário mais ganancioso e usurpador, declarando textualmente “quando o Senhor comprou o escravo, não comprou o que ele possuía" (MOTT, 2010; 1985, p. 105)

O manuscrito de Esperança Garcia faz desmoronar os estereótipos raciais, a ideia enganosa ou a falácia acerca da “submissão natural” do afrodescendente escravizado, propagado pelo discurso colonial e a história oficiosa. Além disso, a Carta lança por terra o falso mito da convivência pacífica ou da “democracia racial”, apregoada em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Nesse sentido, como nos referimos anteriormente, o nome de Esperança significa a resistência escrava no Piauí e, por conseguinte, também no Brasil e Américas.  Esse fato se deve ao teor da sua escritura persuasiva, reivindicatória e ao mesmo tempo comovedora, que se manifesta no sentimento de solidariedade às parceiras, na refutação aos abusos do cativeiro e na coragem e ousadia que ela, na condição de escrava, tivera ao denunciar maus tratos, torturas físicas e proibições às suas convicções religiosas e outros tipos de arbitrariedades praticadas por Antônio Vieira do Couto, o administrador das fazendas da Inspeção de Nazaré, pertencentes à Coroa de Portugal, contra ela, Esperança, os filhos, o marido e parceiras do regime de servidão.

Nas primeiras linhas da Carta, Esperança Garcia afirma sua identidade, se autorreconhece como “escrava” e reivindica, enquanto cativa, mãe e casada, o direito de retornar ao lugar de origem, à Fazenda dos Algodões, para viver ao lado do marido e dos filhos. Em seguida, Esperança dá início ao relato de uma série de queixas contra o Capitão Antônio Vieira do Couto, que a subjugara ao trabalho de cozinheira na sua casa, retirando-a dos Algodões para a Residência da Inspeção de Nazaré e, ao mesmo tempo, impedindo-a da convivência com o marido. A narrativa compromete a reputação do Procurador das fazendas de gado da Coroa de Portugal ante o Governador da Capitania do Piauí, sobretudo porque o primeiro se apropriara da mão de obra cativa, pertencente à Coroa, em benefício próprio. 

A Fazenda dos Algodões situava-se no município da atual cidade de Nazaré do Piauí, no Estado do Piauí. A Carta fala que Esperança fora uma escrava ligada às obrigações da casa grande e, para os padrões da época, era uma mulher consciente a ponto de intimidar o agressor e resistir à agressão escravagista através do seu relato escrito. Antes de pertencer à Coroa, essas fazendas de gado, um total de trinta, pertenciam aos padres Jesuítas, que as receberam como doação do fazendeiro português Domingos Mafrense. Quando “os Jesuítas tiveram seus bens sequestrados, presos e expulsos de Oeiras [então capital do Piauí] pelo Marquês de Pombal”, em 1760 (A. TITO FILHO, 1978, p.12). ), que tivera por cumprimento hierárquico a Carta do Rei D. José de 03 de setembro de 1759, cujo documento sentencia contra os padres da Companhia de JESUS: “… sejam pronta, e efetivamente exterminados, desnaturalizados, proscritos, e expulsos de todos os meus Reinos, e Domínios, para neles mais não puderem entrar” (Collecção dos Breves Pontificios e Leys Regias. Book 1A, Num XVII, p. 33). Os padres da Companhia de Jesus tinham feito os campos criatórios extensivos de bovinos progredirem de 30 para 39 fazendas; “delas faziam parte 50 sítios que se achavam arrendados por particulares a 10$000 réis anuais” (FALCI, p. 166-7).

Cogitamos que Esperança Garcia aprendera a ler e escrever com os padres Jesuítas ou com pessoas relacionadas a eles, de quem fora escrava, antes da expulsão desses sacerdotes por Pombal. Uma vez expulsa a Companhia, as fazendas se tornaram propriedades da Coroa de Portugal. [Por último, as inúmeras leituras da Carta durante as investigações do Pós-Doc (2018-2019), na UFMG, em Belo Horizonte e no Centro de História da Universidade de Lisboa, em Lisboa, Portugal, revelaram-me outras possíveis perspectivas acerca do aprendizado das letras por Esperança].

Não seria precipitado de nossa parte afirmar que a Carta é uma gênese da literatura afro-brasileira, um texto que também anuncia uma escritura negra e feminista pelo tom reivindicatório. Os ornamentos da narrativa, as imagens, as metáforas, o relato pessoal e autobiográfico, as estratégias de persuasão, recorrentes nesse tipo de gênero literário, entram em relação com os poemas e contos das mulheres escritoras dos Cadernos Negros, este principal periódico da literatura afrodescendente contemporânea do Brasil, editado pelo Quilombhoje, e com a obra de autoras afrodescendentes desvinculadas desse grupo. Numa dimensão mais ampla, a Carta tenta abrir a porta de entrada e saída para a humanidade do negro escravizado, o que significa o desejo de reapropriação do corpo e da memória fraturados, violados e violentados.

A Carta de Esperança reivindica ainda o direito de praticar os ritos da religião do branco, já apropriada por ela e as colegas escravizadas, mas essa religiosidade é também enunciada como máscara, autodefesa, dissimulação, contragolpe - uma Negaça[1] da “escrava” delatora que se utiliza, estrategicamente, de pretextos para agravar o delito, o crime praticado por espancamento ou a culpa do administrador da Inspeção de Nazaré, que habitualmente agredia Esperança e os filhos desta. Os motivos do ódio e da violência não são revelados no relato escrito pela escrava. Não se trata de uma afirmação categórica, mas seria compreensível supor que essas agressões impiedosas tenham sido motivadas ou agravadas pelo desejo sexual recalcado do agressor. A crônica da escravidão é repleta de fatos dessa natureza, da consumação ou tentativa de estupros do senhor contra a mulher escravizada. Esse tipo de violência pode se constatar no livro Doze anos de escravidão, autobiografia de Solomon Northup, adaptado para o cinema em 2013.

Esperança Garcia era casada. Ela teria, certamente, resistido à violação humilhante do seu corpo e da sua dignidade pelo administrador das fazendas da Coroa Real. À época da escravidão, alguns tipos de agressões eram silenciados pela vítima, principalmente as que feriam a moral do escravizado. Assim, nos casos de atentado ao pudor dessa mulher negra, ela, de certo, preferia o silêncio a tornar público o constrangimento, causado pela tentativa frustrada ou consumação de um estupro, ou outro tipo de violência que constrangia o cativo. Esse tipo de experiência é também recorrente nos relatos pessoais ou autobiografias dos escravizados/as dos Estados Unidos, conhecidas por slave narratives, cujos autores/as escreveram e publicaram narrativas autobiográficas ou relatos de testemunho, contando fatos da sua própria vida de “escravo” e da vida dos colegas de infortúnio, nos séculos XVIII e XIX (MORRISON, 1987), como também em Cuba e noutros países das Américas onde o africano e seus descendentes foram subjugados à escravatura. O texto de Esperança Garcia assinala ainda as relações de solidariedade, cumplicidade e companheirismo através da convivência amigável entre os escravos da casa grande ou da senzala: “... A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três annos”.

A escrava, subjugada à tortura do corpo, utiliza-se das armadilhas da palavra escrita: das sensações de dor e martírio, das metáforas onomatopaicas, da contundência das imagens visuais e estrondosamente sonoras que representam fenômenos da natureza, tais como: “... grandes trovoadas de pancadas”; “Sou hu colcham de pancadas”. A escrita afirma suas bases na fala oral, na fala do povo pouco letrado, na fala gestual do corpo. Esta linguagem da contorção e do flagelo do corpo, do jogo e construção dos relatos da crueldade apresentados em diferentes cenas da escravidão. A narrativa é fragmentada por esses pequenos episódios, como uma teia de aranha que pouco a pouco vai envolvendo o leitor dentro de um mundo vivenciado pelo escravizado, que nas palavras de Dionne Brand “é a porta que muitos de nós [a Diáspora Africana] esperavam que nunca tivesse existido” (2001, p.19, tradução nossa). A “Carta” denuncia e desqualifica o algoz perante a autoridade governamental da Capitania: “...Primeiro hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço explicar que Sou hú colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada;”. O discurso de persuasão e reivindicatório, o relato autobiográfico e de experiência de Esperança e demais autores e autoras escravizados migraram para as narrativas contemporâneas de testemunho pessoal e coletivo de poetas e romancistas afro-brasileiras como Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Lourdes Teodoro, Miriam Alves, Tânia Lima, dentre outras escritoras afro-brasileiras editadas ou não pelos Cadernos Negros.  

Elio Ferreira de Souza

Teresina, Piauí, 11 de setembro de 2020.

ANEXOS / FOTOS / PEÇAS ARQUEOLÓGICAS

Nazaré do Piauí, Estado do Piauí, Brasil, novembro de 2015.

Foto: Francira RicarteExpedito Pereira e Elio Ferreira. Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Estado do Piauí, Brasil. Local da casa, já demolida pela ação do tempo, onde viveu Esperança Garcia. Antiga Fazenda Algodões
Expedito Pereira e Elio Ferreira. Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Estado do Piauí, Brasil. Local da casa, já demolida pela ação do tempo, onde viveu Esperança Garcia. Antiga Fazenda Algodões

Foto: Francira RicarteExpedito Pereira (proprietário da terra, descendente de Esperança Garcia) e Elio Ferreira, o pesquisador. Local da antiga casa da Fazenda Algodões, onde viveu Esperança Garcia. Nazaré do Piauí, Brasil
Expedito Pereira (proprietário da terra, descendente de Esperança Garcia) e Elio Ferreira, o pesquisador. Local da antiga casa da Fazenda Algodões, onde viveu Esperança Garcia. Nazaré do Piauí, Brasil

Foto: Elio Ferreira e Francira RicarteMoeda real da Coroa Portuguesa, 1775. Peça encontrada no sítio arqueológico da casa, já demolida, onde viveu Esperança Garcia
Moeda real da Coroa Portuguesa, 1775. Peça encontrada no sítio arqueológico da casa, já demolida, onde viveu Esperança Garcia

Foto: Elio Ferreira e Francira RicarteMoeda real da Coroa Portuguesa, 1821. Peça encontrada no sítio arqueológico da antiga casa, já demolida, onde viveu Esperança Garcia
Moeda real da Coroa Portuguesa, 1821. Peça encontrada no sítio arqueológico da antiga casa, já demolida, onde viveu Esperança Garcia

Foto: Elio Ferreira e Francira RicartePeças encontradas no sítio arqueológico, local da antiga casa da Fazenda Algodões. Nazaré do Piauí, Brasil
Peças encontradas no sítio arqueológico, local da antiga casa da Fazenda Algodões. Nazaré do Piauí, Brasil

Foto: Elio Ferreira e Francira RicarrtePeças encontradas no sítio arqueológico da antiga casa da Fazenda Algodões, onde viveu Esperança Garcia, Nazaré do Piauí, Brasil
Peças encontradas no sítio arqueológico da antiga casa da Fazenda Algodões, onde viveu Esperança Garcia, Nazaré do Piauí, Brasil

Foto: Elio FerreiraCasa antiga, Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Piauí, Brasil
Casa antiga, Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Piauí, Brasil

Foto: Elio FerreiraCasa antiga, Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Piauí, Brasil
Casa antiga, Algodões, zona rural de Nazaré do Piauí, Piauí, Brasil

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[1] Negaça (I) – s.f. engodo, isca, recusa, negação (Ferreira); Negaça (II) s.f. movimento defensivo executado com o auxílio das mãos e dos pés no solo, dando sequência ao jogo de fora. (Bola Sete); Negaça (III) s.f. no jogo da Capoeira, o ato de negar o corpo, bambolear pra lá e pra cá, ameaçar o movimento e negá-lo; usada para confundir o oponente (Rego); (LIMA, 2005, p. 103).

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