Arquivo Pessoal

Elio Ferreira

Nasceu em Floriano, PI. Professor de Literatura na UESPI. Doutor em Letras; Pós-Doutor em Estudos Literários. Publicou mais de trinta livros.

“O BUMBA-MEU-BOI ‘NASCEU’ NO PIAUÍ E DEPOIS FOI PARA O MARANHÃO”?

Gênese do Bumba-meu-boi no Piauí. Boi de Né Preto. Floriano. Manuscrito. Esravidão. Fazendas de gado

“O BUMBA-MEU-BOI ‘NASCEU’ NO PIAUÍ E DEPOIS FOI PARA O MARANHÃO”?

Foto: Alente/Yuri GraneiroBumba-meu-boi
Bumba-meu-boi

    Estimados leitores e leitoras, trago-lhes em primeira mão uma raridade, essa pérola que, até se prove o contrário, trata-se do registro escrito mais antigo do Brasil a referir-se à gênese, à presença primeira do Bumba-meu-boi no Piauí. O que significa afirmar, que o Boi do Piauí migrou para o Maranhão, como veremos no decorrer das páginas seguintes. O manuscrito é datado de 22 de junho de 1857, escrito há 163 anos, ou mais precisamente há cento e sessenta e três anos e seis dias. A cidade é Teresina, então recente capital do Piauí. O teor da petição diz que Maurício, escravizado e dirigente do boi de brincadeira, tendo obtido a autorização do seu senhor, requer licença ao Delegado para brincar no Bumba nas noites de São João e São Pedro. Esse documento é sui generis, particular por se tratar também do protagonismo de um escravizado que, embora estabeleça certo limites, requer o direito de liberdade para participar da brincadeira, à noite. E ainda pela raridade do manuscrito e o que ele suscita como crônica social e registro histórico do cativo afro-brasileiro no início da segunda metade do século XIX, além da gênese do Bumba-meu-boi no Piauí, Maranhão, Pará e estados do Norte e Nordeste do Brasil. Em particular, tal gênese corrobora com a formação econômica e sociocultural do Piauí Colonial, assentada na maior criação de gado vacum do país.

    Sinto-me feliz e no dever de socializar aos interessados  a prova cabal, o registro material da boa notícia do Boi do Piauí, acompanhado da fonte original para quem queira dela se utilizar, publicar ou compartilhar, dando-se, portanto, o devido crédito a este semeador que traz a público o presente documento através deste blog, conforme transcrição ipsis litteris:

P. Secretaria de Polícia     Ilmo. Sr. Dr. Chefe de Pola.

22 de Junho de 1857

                       (rubrica ilegível)

  Maurício, escravo de Franc.º Mendes

de Sousa, morador n’esta Cide. ten-

do obtido licença do seu Senhor para

dirigir o brinquedo denominado Bum-

ba meu boi em vesperas de São

João e São Pedro a’ noite, vem

pedir a’ VS se digne conceder-lhe li-

cença p.ª poder sahir a’ rua nas

referidas noutes, sujeitando se o

Suppr.ª aos direitos respectivos, pelo

q . //.

Na

                 E. R. Mce.

         Pelo Suppr.ª  q. não sabe escrever

         Antonio Jo Bapta. Serra

           

                  

Governo do Estado do Piauí / Secretaria de Governo do Piauí – SEGOV / Arquivo Público do Piauí -                               APPI / Sala do Poder Executivo / Pasta: Teresina - Coletoria - Escravos

    Não se trata de simples acaso. Considero uma dádiva de Olorum, dos orixás e antepassados negros e negras, que ofertaram a este fiel, perseverante e humilde aprendiz de contador de história e poesia. Localizei o manuscrito no Arquivo Público do Piauí, entre setembro de 2018 a abril de 2019, quando me dispus a fazer uma devassa nas Pastas de documentos manuscritos do APPI, à procura da “Carta” (1770) de Esperança Garcia e de uma carta anônima e sem data. A última também reserva inegável valor e, certaamente, fora escrita por um branco e funcionário da Coroa de Portugal. As duas missivas tiveram suas transcrições publicadas em livros, pela primeira vez, por Luiz Mott (1985-2010). Infelizmente, não conseguimos identificar o funcionário, responsável pela exposição das duas cartas na ocasião do aniversário do APPI. Ambas se encontram perdidas, extraviadas ou se transformaram em pó como folha seca, devido a ação do tempo e má conservação do acervo dessas fontes primárias junto ao Arquivo Público do Piauí, necessitando-se de medidas urgentes do Estado, como a digitalização dos referidos documentos, para a preservação desse inalienável patrimônio da memória piauiense.

    No APPI, manuseei, li e fotografei entre três a cinco mil documentos manuscritos. Encontrava-me empenhado no projeto de Pós-Doutor em Estudos Literários (2018/2019) na UFMG, sob o tema Narrativa de Escravidão no Brasil: A Carta da “escrava” Esperança Garcia de Nazaré do Piauí (1770), com estágio de maio a julho de 2019 no Centro de História da Universidade de Lisboa. Ali, realizei intensa investigação na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino e na Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se pode encontrar uma imensidão de documentos sobre a invasão da África e de outras ex-colônias de Portugal, a guerra e massacres aos indígenas brasileiros e a escravatura dos afrodescendentes no Brasil.

    Se a “Carta” de Esperança e a carta anônima já referidas ainda existem, elas se encontram no Arquivo Público do Piauí. Sugiro aos pesquisadores que, a priori, sigam o itinerário das Pastas de Escravos, da Coletoria e Escravos de Campo Maior a Parnaíba. Manuseei e continuo, quando possível, relendo as documentações fotografadas e armazenadas em arquivos pessoais, referentes às cidades do sul do Piauí, começando São João do Piauí até Teresina. Chamo à atenção ainda para o fato de que a afirmação da existência de uma cópia da missiva de Esperança, em Lisboa, não passa de uma mera falácia.

A GÊNESE DO BUMBA-MEU-BOI DO PIAUÍ

Foto: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes313. M. de Macedo (del) e Armando Pedroso (sculpt.). O Bumbá. 1883. Xilogravura [557]
313. M. de Macedo (del) e Armando Pedroso (sculpt.). O Bumbá. 1883. Xilogravura [557]

    Julgo que seria mais prudente, falarmos de uma gênese do Boi ou Bumba-meu-boi no Piauí. No entanto, costumamos dizer nas rodas de conversa sobre Bumba-meu-boi e cultura popular, que o Boi de brincadeira nasceu mesmo no Piauí. Tal especulação pode ser fundamentada a partir da formação de uma estrutura econômica baseada na cultura do boi, na mão de obra escrava, na história e narrativas míticas da cultura popular deste Estado, cujas terras e pastagens durante a colonização, já na segunda metade do século XVII, deram lugar ao maior e primeiro grande centro criatório de bovinos do Brasil. Assim, a história econômica e social, a memória oral, as narrativas, as lendas e mitos de fundação de origem negra e indígena relacionados à cultura do boi apontam para esse fato de que o Bumba-meu-boi nascera no Piauí e daqui o auto pastoril teria migrado para o Maranhão, Pará e outras regiões do Brasil. Contudo, isso não anula o fato de que o Boi de cada região tenha adquirido características próprias e recebido influências de outras culturas ou mesmo se originado diretamente da cultura europeia, como afirmam alguns pesquisadores acerca da origem do Boi-de-mamão de Santa Catarina, que negam a presença de elementos do Boi do Nordeste no folguedo catarinense.[1] Desse modo, o Boi apresenta suas variações conforme o lugar, como o Bumba-meu-boi do Piauí e Pernambuco, o Bumba-boi do Maranhão, Boi-surubi do Ceará, o Boi-calemba do Rio Grande do Norte, o Bumba da Paraíba, o Boi-bumbá do Pará e Amazonas, o Bumba-de-reis do Espírito Santo, o Boi-de-mamão de Santa Catarina, o Boizinho do Rio Grande do Sul e outros.

    No poema “Bum bum bum” (1961), Solano Trindade remete à memória oral, ao canto de fundação do Bumba-meu-boi que evoca a gênese do folguedo através da referência à história da produção econômica do boi no Piauí:

"O meu boi morreu

que será de mim?

Manda buscar outro,

ó maninha,

lá no Piauí”.

    Reportando-se à leitura da mesma cantiga da tradição cultural nordestina, Hermilo Borba Filho sentencia que “Pereira da Costa imaginou que a origem do auto teria tido lugar por ocasião da colonização das terras do Piauí, em fins do século XVII, com as primeiras doações de terras em sesmarias feitas pelo Governador de Pernambuco. Achando ainda mais que o espetáculo deveria ser de origem pernambucana” [ou seja, oriundo das terras piauienses antes pertencentes a Pernambuco][1] Borba Filho acrescenta que a “tese não se sustenta”.[2] Contudo, somos favoráveis à visão de Pereira da Costa. Os argumentos do “folclorista” e professor piauiense Noé Mendes são condescendentes à nossa opinião:

"O certo é que nosso Boi se originou aqui mesmo no Nordeste, uma região colonizada através das  fazendas de gado, onde o boi era o centro da sobrevivência local. E o Piauí é o estado onde esse relacionamento tornou-se mais íntimo. Daí a brincadeira estar revestida de tanta popularidade, de tanta pompa e colorido. O boi, para nós, não é apenas um animal importante como outro qualquer, mas está revestido de uma profunda significação mítica.[3]"

O BUMBA-MEU-BOI: UMA CRIAÇÃO DO NEGRO ESCRAVIZADO

    O Bumba-meu-boi é uma criação do negro cativo, que representou a mão de obra responsável pela criação dos rebanhos bovinos nas fazendas do Piauí colônia. O Bumba reúne raiz múltipla na formação do mito, do auto pastoril composto de elementos de culturas africana, indígena e europeia, com a predominância das culturas do negro e do indígena. Considerando a releitura de Deleuze e Guattari, feita pelo afro-martinicano Édouard Glissant, dir-se-ia tratar de uma cultura de rizoma (2005). Assim, a história da colonização aponta para uma gênese do Bumba-meu-boi no Piauí, embora esse folguedo apresente pontos de entrecruzamento com as “velhas farsas populares que vêm desde a commedia dell’arte às pantomimas de circo”,[1] com o boi Ápis do Egito e outras danças e cantos dramáticos da tradição popular originária da cultura africana, que também se apropriou de elementos das culturas indígena e ibérica. O fato é que o Piauí “chegou a reter os mais ricos rebanhos de todo o império colonial português na América”.[2] Certamente, a economia abrigou a gênese do Boi de brincadeira neste espaço povoado pelos povos originários e repovoado pelo negro e o europeu. Na segunda metade do século XVII, com as doações de terras em sesmarias pelo Governo de Pernambuco, fundaram-se, em 1674, as primeiras fazendas do Nordeste no Piauí, tendo por eixo as cidades, hoje, de Floriano e Oeiras.[3] Assim, o Boi de São João é a representação simbólica da história, economia, cultura, etnia e da formação social do Piauí. O Estado apoiava suas bases econômicas na pecuária: a carne e o couro bovinos. Nesse cenário, a presença do vaqueiro foi decisiva para que as fazendas prosperassem. Esta classe de trabalhador era, na sua grande maioria, de “pardos” e pretos escravizados. Foi a chamada “civilização do couro”.[4] Isso seria motivo de orgulho, se a expansão e prosperidade das fazendas não estivessem diretamente relacionadas à exploração da mão-de-obra escrava do negro e o genocídio das nações indígenas do Piauí: "Acroá, Tremembé, Gueguê, Timbira, Jaicó, Tabajara e Pimenteira” que habitavam o território piauiense, aproximadamente 316 mil indígenas."[5]

    O Boi é a mais forte expressão da cultura popular do Piauí. Hoje, talvez essa afirmação já não tenha tanta ressonância e o Boi tenha se tornado uma narrativa do passado para a população jovem. Vivi minha infância ouvindo as apresentações do “Boi de Né Preto”. Era a grande festa da cidade de Floriano, a de maior recepção, equiparando-se ao carnaval de rua e clubes, que sempre tivera uma forte tradição na cidade. Havia também o Boi de Ademarzinho da Beira do Rio e ainda o Boi do Barão de Grajaú, cidade maranhense vizinha a Floriano, separadas pelo rio Parnaíba.

MEMÓRIAS, NARRATIVAS E CANÇÕES DO BOI DE NÉ PRETO DE FLORIANO, NO PIAUÍ

    No dia da morte do Boi de Né Preto, a cidade comparecia em peso, vestia-se a melhor roupa, moças e rapazes se enamoravam. Era no mês de junho, por isso, supõe-se, Boi de São João. Jardineiro era o nome do Boi de Né Preto. No dia 4 de maio dava-se início aos ensaios. As visitas às casas davam-se à noite, excetuando-se as ocasiões especiais ou comemorativas. Ele sempre cantava na minha casa. Meus pais eram grandes apreciadores das festas populares. Em Floriano, havia também o Boi de Reisado, que habitualmente cantava na minha casa, mas este era outro tipo de folguedo com seus personagens lendários e do mundo real, como lobisomem, jaraguá, careta, burrinha, etc. O Bumba-meu-boi de Né Preto era diferente. Tinha personagens como Boi, Chico ou Careta, Catirina, Amo ou Mestre, Vaqueiros, Caboclos. Os meninos ficavam encantados, enfeitiçados e ao mesmo tempo temerosos ante a presença e as façanhas do Boi. Durante a apresentação, meninos e meninas se mantinham colados ao corpo dos pais. Minha casa ficava mais ou menos à distância de trezentos metros da casa de “seu Né Preto”, o dono e Amo do Boi Jardineiro, numa rua acima, paralela à minha. Nós, os meninos da minha rua, também improvisávamos o nosso Boi. Às vezes me surpreendo cantarolando essas canções do cancioneiro popular, como as toadas do Boi de Né Preto da cidade de Floriano, transcrita abaixo, também cantada por outros Bumba-meu-boi do Piauí. Essas toadas se estruturam sob a forma de quadra, repetidas enfaticamente durante a execução do canto nas apresentações. As citadas abaixo foram catalogadas da tradição oral ipsis litteris, em cuja construção vocabular apresenta alguns arcaísmos:

"O couro do meu Boi,

No salão alumeia,

Ô, no salão, ele brilha,

Ô, no sereno qui’lareia."

    E ainda a cantiga de chegada, composta por duas quadras ou estrofes de quatro versos:

"Morena bela,

Mandô me chamá.

Eu venho chegando agora,

Com meu pessoá.

Ô abre a porta,

Acende a luz,

Barre o terrêro

Pro meu boi brincar."      

    E outra toada como a seguinte, composta de duas estrofes de cinco versos:

"Chegô, chegô

Chegô eu vi chegá

Se a dona da casa

Barre o terrêro

Pro meu Boi balançar.

Se a dona da casa

Barre o terrêro

Com bassôra de argudão,

Qui a barra do Boi é branca

Num pode arrastá no chão."

    Há pouco pude presenciar a execução das duas primeiras canções pelo Boi Imperador da Ilha, do Sr. Raimundo Araújo, no bairro Monte Castelo em Teresina. Retomando as lembranças de infância, o Boi de Né Preto era concebido pelas crianças como um boi de carne e osso, um boi de verdade e mandingueiro. As fronteiras entre o imaginário/mítico e o real se desfaziam. O Boi fugia, não queria morrer e era perseguido de perto. O vaqueiro tinha que ser um homem de resistência física para ir ao encalço do Boi, do mesmo modo que um vaqueiro de verdade tem de perseguir o boi no meio da caatinga, montado no seu cavalo. Aos oitenta e seis anos de idade, Né Preto narrava as memórias de um boi antigo para mim, para o poeta William Melo Soares e demais pessoas presentes. Isso sob a copa de um pé de algaroba, defronte à sua casa humilde, no Bairro Caixa D’água, na periferia de Floriano. Sua narrativa me arrastava para as imagens da minha infância. Era nas primeiras horas da tarde de domingo. Dia da Morte do Boi. As janelas e calçadas apinhadas de gente. Eu olhando da janela, corria para calçada da minha casa depois que o Boi passava em disparada, como uma bala e o vaqueiro no seu encalço. O Boi subia a rua do Ouro na direção do bairro Viazul, depois Terra Preta, Apertar da Hora e talvez Amparo, fugindo do vaticínio que o aguardava às seis horas da tarde no mourão do Matadouro:

"O Boi num quer morrer. Quem é que quer morrer? Então ele se esconde, e o vaqueiro corre estreito. Nesse dia o Boi se escondeu e nós aqui procurando o Boi por toda parte e ele escondido lá no bairro Manguinha. Eu fiquei danado: o povão todo esperando pela morte do Boi, e ele num aparecia. Nesse dia, eu xinguei todo mundo, xinguei Miolo, Vaqueiro, Catirina, só não me bateram porque não quiseram. Só matemos o Boi dois dias depois.[10]"

    O espetáculo da morte do Boi era no matadouro público. O Boi era preso ao laço e amarrado ao mourão. Antes de ser dominado, o Bumba tentava escalar as toras ou linhas de carnaúba, que formavam a parede do curral. A meninada gritava cheia de emoção. Lá no fundo do meu coração, desejava que ele escapasse de uma vez por toda e continuasse cantando nas casas o ano todo. Mas isso nunca acontecia. O arraial do Boi era à noite, na época dos festejos de São João, no mês de junho e a morte era oito de julho, data do aniversário da cidade. A festa transcorria num largo de areia branca, mais amplo do que um campo de futebol, nas proximidades do antigo matadouro de Floriano, à distância de alguns quarteirões da minha casa, onde posteriormente foram construídos o Colégio Estadual Osvaldo da Costa e Silva, o Grupo Escolar Fauzer Bucar, uma praça, uma quadra de esporte e áreas adjacentes.

AS NARRATIVAS PROTAGONIZADAS POR NÉ PRETO E O BOI

    Em 1987, esse Boi de pandeirão, matraca e maracá, do qual as mulheres também tomam parte, retornava às atividades graças aos esforços de alguns voluntários da cidade, depois de permanecer desativado durante quatro anos por falta de recursos financeiros, pois os brincantes do Boi se encontravam mais pobres ou desestimulados a comprar sua própria indumentária luxuosa que custa um preço elevado. Naquele ano, Né Preto completava sessenta e seis anos de brincadeira naquele Boi, que fora popularizado como “Boi de Né Preto” e lembrava:

"O boi era do finado Alarico, um cabra moreno, um cabra bom. Eu e um cunhado dele, que era o miolo, brincava debaixo do boi, eu era o vaqueiro, o guia. Um dia ele me chamou na casa dele, eu e o Doca, que era cunhado dele, ele tava doente e disse: “Né Preto, você ou o Doca vai tomar conta do boi, porque dessa vez eu não escapo.” Eu falei: ”Rapaz, num diga isso!...” O Doca disse que num queria porque não sabia fazer. Eu disse: “Eu fico. Num sei fazer bom, mas faço.” Ele falou: “Então você fica com os trens, o Doca fica sendo o miolo” [o que brinca debaixo do boi]. Depois o Doca se mudou para Teresina, eu arranjei outro miolo e fiquei sessenta e seis anos fazendo boi.[11]"

    A narração de Né Preto revela a tradição secular do Boi de Floriano, provavelmente de 1910. Né Preto recebeu o Boi de “Alarico”, que também já vinha brincando no Boi há algumas décadas. O Boi viera de Oeiras, antiga capital do Piauí. Ali certamente, existiram muitos outros antes deste. O documento mais antigo, de que se tem notícia a tratar sobre o Bumba-meu-boi, é o do jornal “O Capuceiro”, de 11/01/1840, escrito por Lopes da Gama, intitulado “A Estultice do Bumba-meu-Boi”.[12] Mas esse parece se tratar de outro tipo de Boi, ou seja, do Boi de Reisado, cujos personagens são diferentes do Boi do Piauí e do Maranhão, acerca do qual me refiro nestas páginas. É provável que o Boi do Maranhão tenha surgido após a introdução da atividade extensiva do pastoreio de gado bovino nessa Província, que teria ocorrido “durante a revolta da Balaiada” (1938-1941).[13] A conhecida narrativa de fundação do Boi do Piauí conta que o Pai Francisco, um escravo negro, matou o boi do patrão para satisfazer a esposa grávida que desejou comer a língua do boi. O Sr. Raimundo Araújo, Amo do Imperador da Ilha de Teresina, fundado em 1934, conta que “O Bumba-meu-boi nasceu em Oeiras. Quem fez a brincadeira do Bumba-meu-boi foram os índios e numa caveira. Eles encontraram uma caveira de boi e botaram num pau e ficaram brincando. Inclusive é por isso, que a gente usa aquelas penas” (2005, entrevista), indicando os Caboclos de Pena, personagens do Boi do Piauí. Na memória das pessoas mais velhas de Floriano preserva-se ainda um boi rústico, antigo: o Boi-de-fogo, recuperado na narrativa memorialista de Né Preto, cujos episódios são desconhecidos em outras paragens, isso é o que nos consta:

"Só se via aquelas tochas de fogo. Era cada bambu desse tamanho! [...]. A gente vestido em dois sacos de estopa molhada e coberta com tabatinga, mesmo assim os alfinetes ainda furavam o coro da gente.  “É fogo, é fogo/É fogo na cidade/E os caixeiros/Tão quebrado”. Quando dissemos “os caixeiros tão quebrado”, o pau comeu duro! E eu ali por debaixo da roupa do finado Zé Duque, um negão alto, que era aciador. Eu fiquei por baixo da roupa dele, uma fumaça! E o pau comendo. [14]"

    Pretendo discutir e esclarecer alguns pontos e evocar uma discussão em torno de uma gênese e da importância desse folguedo, que durante alguns anos foi negligenciado pela população e os governos do Piauí. Isso foi provavelmente um dos pontos cruciais que gerou todo esse silêncio mau pressagiador e nos fez perder a antiga referência nacional do Boi do Piauí, indicado pela canção de domínio público ou narrativa de fundação, que vale lembrarmos mais uma vez: “O meu boi morreu/que será de mim?/Manda buscar outro,/ó maninha,/lá no Piauí”. Isso dera lugar ao merecido valor pela beleza e pujança dos espetáculos do Boi do Maranhão e do “Boi de Parintins”, celebrados pela mídia nacional.

O BOI CHOROU, EU VI. QUEM NÃO CHORA NA HORA DA MORTE?

     Mais uma vez me reporto às memórias do Bumba-meu-boi da minha infância, o Boi de Né Preto. O Boi de pandeirão, matraca e maracá do meu bairro. O Boi do Piauí que migrou para o Maranhão, Pará e outros lugares do Brasil. Essa transferência deve ter acontecido em consequência da migração de vários trabalhadores cativos e vaqueiros das antigas fazendas do Piauí para o Maranhão, na época da implantação das primeiras fazendas de gado no território maranhense, ocorrida na primeira metade do século XIX. Tal fato contrariou a vontade da maioria desses homens, mulheres e crianças escravizados, que foram forçados a migrar com o objetivo de povoar as fazendas do estado vizinho e cuidar do rebanho bovino e cavalar. Acerca desse tráfico interno da mão-de-obra escrava, Solimar Lima afirma que “[..] em 1820, por exemplo, foram solicitados ‘25 casais’ para o Maranhão. A notícia da partida parecia trazer dias de desespero para os afrodescendentes."[1]

    Essa relação entre o Bumba-meu-boi e a comunidade negra trabalhadora, escravizada é evidenciada também quando me refiro à história do Boi de Né Preto de Floriano, Piauí. Nesse boi a maioria de seus “brincantes” eram pessoas do povo que trabalhavam no abate de bovinos. Esses trabalhadores eram majoritariamente homens, mulheres e crianças que moravam num bairro negro da cidade de Floriano, à distância de quatro ruas do meu bairro. No Matadouro Público, o abate dos bois ficava sob a responsabilidade dos homens, realizado num grande galpão com cobertura de telha e piso de cimento liso. Né Preto era o mais velho daqueles homens e exercia sua liderança sobre o grupo. Ao seu lado, estava Cum, Mundico Capivara, Guilhermão e outros nomes que me fogem à memória. O boi era preso ao laço e amarrado ao mourão. Diziam que o boi manso chorava, corria-lhe um fio de lágrimas no canto dos olhos. Um dia me aproximei de um desses animais prestes ao sacrifício e fui surpreendido – olhei bem no canto dos seus olhos - na verdade, o boi chorava. O boi bravo empacava, arremetia-se contra o inimigo. Nessas horas, chamavam Guilhermão, um homem corpulento, forte como gigante. Paulão, um amigo de infância do meu bairro, lembra que foi “segurão” de boi no mesmo matadouro, ou seja, segurava a corda que subjugava o animal. Ele conta que Guilhermão, com a mão direita, prendia um dos cornos do boi e pedia a ele, o segurão – “Paulo, o machado!”. Às vezes era impossível atender ao pedido. E Paulão respondia apreensivo – “Seu Guilherme, estou segurando o boi!” Então, com o punho esquerdo, Guilhermão desferia um murro na nuca do boi que caía por terra, agonizante. Em seguida, sangrava o animal. Era um espetáculo trágico, mas admirável e emocionante para a maioria das pessoas presentes.

    Depois de abatidos, os animais eram limpos e transportados para o Mercado Público. A cabeça, as patas e as vísceras eram levadas à casa das “fateiras”. No quintal dessas residências, as vísceras eram limpas, tratadas. Em seguida, eram vendidas em pequenas bancas no mercado e também na própria casa desses “brincantes” do Boi de Né Preto. Daí porque a Rua Manuel Lapa, situada no Bairro Curador, há algumas décadas era popularmente conhecida como Rua do Fato. Ali e nas proximidades, morava a maioria dos brincantes do Boi. Entre meados da década de 80 aos anos 90, todas as noites, o Boi de Né Preto - o antigo Jardineiro, já com outro nome, se reunia no seio dessa comunidade, no quintal da casa dos responsáveis pela organização do Boi, os irmãos Pedro Antônio e Antônio Cafuçu, acompanhados de suas respectivas esposas, dona Teresa e dona Maria de Fátima.

     Essa imagem do velho contador de histórias, do criador de passarinhos, do hábil artesão, do griot, do prolífero autor de cantigas do bumba, que fora Né Preto e do seu Boi Jardineiro, é algo inapagável da minha memória de menino da Rua do Ouro, que também fora encantado por aquele mundo em que a realidade se confundia com a fantasia, o imaginário, o mágico, como neste poema de minha lavra que se transformara em samba enredo da escola de samba Mangueira, então capeã, da cidade de Floriano, no Estado do Piauí, no início da década de 1990. A letra foi musicada pelo maranhense Toni Ferreira, radialista e articulador cultural, muito querido pelos serviços prestados à cultura da nossa cidade.

NÉ PRETO

              Elio Ferreira

Seu Né Preto

espere por mim

com banhos de alecrim

com histórias de Trancoso

com cantigas de passarinho

com sete gerações bumba-meu-boi

no terreiro

não era gente debaixo não

era boi mesmo

e cheio de artimanhas.

Seu Né Preto

me ensine

a fazer uma gaiola

um papagaio de papel

um carrinho de buriti

e o caminho daquela serra

onde se caçava alecrim.

Seu Né Preto

me deixe brincar

na roda de São Benedito

na roda de São Gonçalo

no bumba-meu-boi

boi bumbá

eita, boi Jardineiro!

eita, boi mandingueiro!

Seu Né Preto,

pouco se espera dos quintais

sem o canto do bem-te-vi

sabiás e pardais

urubus sobre a cerca de candeia

galinhas ciscando o monturo

e o cocoricóóó de um galo de

Calcutá

amanhecendo o girassol amarelo,

amarelo

a manhã amarela de céu azul, azul

no bairro Caixa-d’água

da minha pequena cidade.[1]

    Do mesmo modo, na África anterior à escravidão europeia, os ritos religiosos, os cantos, as manifestações culturais do povo geralmente estavam também associadas ao trabalho, às atividades econômicas da sociedade tribal, grupo étnico ou nação. Os ritos de cerimônias relacionados ao boi eram também celebrados na África e, indubitavelmente, foram trazidos pelos cativos africanos originários de sociedades pastoris (Lopes, 1988, p.163-4). Transplantados para o Brasil, esses antigos ritos foram recriados nas fazendas do Piauí, entrecruzando-se também com as culturas indígenas e europeias. Dessa negociação de culturas teria se originado o auto pastoril do Bumba-meu-boi. Assim, supõe-se que uma gênese do “Boi de brincadeira” fora constituída nas povoações do sul do Piauí, por volta do final do século XVII, pelos trabalhadores escravizados que cuidaram das primeiras fazendas de criação de gado nas terras piauienses. Nesse contexto, o mito de fundação do Bumba-meu-boi nos remete à história de “Catirina”, que deseja comer a língua do boi mais formoso da fazenda do patrão. Chico, o vaqueiro, atende ao desejo da esposa grávida e mata o boi. A partir desse episódio se desencadeia a ação dramática do auto popular. Como já nos referimos em páginas anteriores, as relações entre arte, trabalho, economia, religiosidade e sua função social são peculiares às sociedades africanas, transculturadas para as Américas.

    O Sr. Raimundo Araújo, mestre do Bumba-meu-boi “Imperador da Ilha” do bairro Monte Castelo de Teresina, Piauí, conta que, “um dia um índio achou uma caveira de boi e enfiou num pedaço de pau, e levou para a tribo, e começou a dançar. Os negros viram aquilo e fizeram o Bumba-meu-boi”.[1] Provavelmente isso se tratava do ritual da caça boi pelo indígena, pois com a fundação das primeiras fazendas de gado no Piauí, os autóctones passaram a caçar o boi e, consequentemente, os fazendeiros se empenharam ainda mais na organização de milícias para o genocídio contra as sete nações indígenas do Piauí. O rito da caça ao boi deve ter estimulado a memória do negro escravizado a lembrar de antigos ritos africanos, que estavam relacionados à festa do boi. Desse modo, a memória pessoal e coletiva protagonizada pelos afrodescendentes significa uma forma de resistência às narrativas únicas, aos valores e hegemonias da cultura ocidental e colonialista. A travessia do Atlântico permitiu um diálogo de experiências do passado com o presente entre os diferentes povos sequestrados, cativos e livres, constituindo-se estrategicamente em práticas solidárias e redes de transferência da cultura negra nas Américas.

NOTAS

[1] CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001. p.71-72.

[2] (BORBA FILHO, 1982, p. 5).

[3] (BORBA FILHO, 1982, p. 6).

[4] MENDES (de Oliveira), Noé. Folclore Brasileiro Piauí. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1999. p. 56.

[5] (BORBA FILHO, 1982, p. 5).

[6] BASTOS, Cláudio de Albuquerque. Dicionário Histórico e Geográfico do  Estado do Piauí. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 1994. p.433.

[7] PÔRTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Teresina: COMEPI, s.d. p. 143.

[8] (PÔRTO, s.d. p. 139).

[9] MACHADO, Paulo. As trilhas da morte. Teresina: Corisco, 2002. p. 24-25).

[10] FERREIRA. Elio e SOARES, William Melo. Né Preto. Teresina: Corisco, 1988. p. 13.

[11] (FERREIRA E SOARES, 1988, p.11-12).

[12] (BORBA FILHO, 1982, p. 6).

[13] BUENO, André Paula. Bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankin Editorial, 2001. p. 29.

[14] (FERREIRA E SOARES, p.10-11).

[15] LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822 – 1871. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 53.

[16] FERREIRA, Elio. América negra e outros poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2014.

[1] Depoimento do Sr. Raimundo Araújo (2005), Amo do bumba-meu-boi Imperador da Ilha.0

REFERÊNCIAS

Fotografia do bumba-meu-boi - https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search?p=Fotografia+do+bumba-meu-boi&fr=yhs-omr-001&hspart=omr&hsimp=yhs-001&imgurl=http%3A%2F%2Falente.com.br%2Fwp-content%2Fuploads%2F2017%2F06%2Fsao-luis-20-Large.jpg#id=0&iurl=http%3A%2F%2Falente.com.br%2Fwp-content%2Fuploads%2F2017%2F06%2Fsao-luis-20-Large.jpg&action=click

MOTT, Luiz. Piauí colonial: população, economia e sociedade. – 2. ed. – Teresina: APL; FUNDAC; DETRAN, 2010. 200 p. il. – (Coleção Grandes Textos – vol. 8)

MOTT, Luiz. Piauí colonial. Teresina: Projeto Petrônio Portella/Governo do Estado do Piauí, 1985.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. A travessia da Calunga grande: três séculos de imagens sobre o negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

SOUZA, Elio Ferreira de. Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes. Curitiba: Appris, 2017.

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