Arquivo Pessoal

Chico Mário Feitosa

Biólogo, doutor em Ecologia e Recursos Naturais, professor da UNIVASF São Raimundo Nonato e cantor nas horas vagas.

Guiado por Deus do Antropoceno

Ecologia social

O mantra “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” é sem dúvida um dos mais entoados quando estamos num barzinho, onde tem um ‘Voz & Violão’ ao vivo. E realmente é muito comovente ouvir palavras tão certeiras como essas do Renato, que às vezes nos levam á reflexões profundas – geralmente com a família, já que o nome da música é “Pais e Filhos” (As Quatro Estações, 1989). Mas e você, lembra-se disso ou algo parecido com essa célebre frase em situações cotidianas, como por exemplo, o trânsito? E quando essas ‘pessoas’ não são quem você conhece, o que faz ou pensa?

Toquei no tema ‘trânsito’ de propósito. E não é por que tenho um 1.0 ano 2012 e por isso teria complexo de vira lata. Meu ‘negão’ ou ‘céutápreto’ – como diz minha noiva – já está com seus 150 mil km rodados. E bem rodados. Toquei nesse tema por que tenho testemunhado, junto com o negão, muita coisa digna de alguém que simplesmente não tá nem aí pro outro. Como dizem por aí, 'tão cagando e andando'. E é por isso, tenho certeza, que infelizmente morrem tantas pessoas em acidentes pelas estradas Brasil afora. Somos o quinto colocado no ranking mundial de mortes causadas por acidentes de transito. E o mantra, ó, foi pro espaço sideral nessas horas. Bem na hora que o chefe maior de nossa nação pensa e fala em afrouxar a fiscalização nas estradas.

Mas o que mais me chama atenção é que somos um país com várias matrizes religiosas e que certamente devem ter a paz como um de seus princípios. Ou não? Agora fiquei na dúvida... Mas parece que não, pois toda vez que vejo uma caminhonete ou esses outros carros grandes tipo ‘suv’ ultrapassando numa curva, na contramão, geralmente vejo estampado na sua bunda os dizeres “Guiado por Deus” ou algo similar. É nessas horas que sempre confirmo que o mantra inicial lembrado aqui passa longe da pressa dos motoristas que geralmente flagro cometendo essas infrações.

O fato é que se gasta muita vida à toa. Toda hora e de todas as formas possíveis. No entanto, o que os pretensos atores a ‘Velozes e Furiosos’ também não lembram é que estão desgastando mais suas saúdes e seus veículos em situações extremas. Uma acelerada a mais, uma ação brusca qualquer, desgasta peças que devem trabalhar no limite – sem contar gastos excessivos de combustíveis e lubrificantes. E quem paga essa conta é a natureza e não você, pois mais matéria prima tem que ser extraída para a fabricação das peças e montagem dos carros, que por sinal, ultimamente tem batido recordes de produção. Resultado: mais carros novos têm entrado nas ruas, avenidas e estradas do país. Dito isto, o que dá a entender é que não estamos mais nem aí; nem com vidas, nem com tudo mais.

Quanto carro cabe mais por aqui? Foi essa pergunta que me fiz quando fui pela última vez na capital do meu Estado natal, Teresina. Lembro que era uma belezura transitar por lá, principalmente a pé. Hoje, acompanhando o ritmo desenfreado do consumismo, até mesmo o humor do teresinense mudou: chamam-te de ‘retardado’ se tu para na faixa pro pedestre atravessar. Tristes tempos. Eu diria tempos sombriamente reflexivos – que refletem um contexto social e histórico do país.

Mas voltando a pontuar o assunto ‘natureza’, ‘matéria prima’ e coisas envolvidas nisso (que o pessoal mais descolado chama de meio ambiente), tenho ficado cada vez mais preocupado e assustado com o crescimento do consumo. Sinceramente, achava bem melhor o estado “atrasado” do meu Estado. E quando penso em carros, lembro logo do principal combustível utilizado – a gasolina – que como todos sabem, é regrada. Em tempos de energias mais responsáveis, me dá certa aflição (mas não medo) pensar no colapso que em breve pode ocorrer. Eu falo colapso de verdade, desses que nem os socialmente poderosos saberão o que fazer; sim porque para os pobres, ah esses já estão em pleno colapso e há muito tempo. Lembrar que preços rodeando os R$ 5,00 por litro (para cima e muito pouco para baixo) me faz também lembrar toda a cadeia logística para levar e trazer coisas pra lá e pra cá, tipo alimentos e outros produtos. Por isso, o lema é produzir mais para que a matriz energética dê conta da demanda consumista aumentada.

Aqui o mantra “é preciso amar” já não se estende mais para a natureza. Como dizia uma professora (ah que saudades das aulas de Botânica...) “Já foi pras cucuias meu fi”. Se já não se estendia para as próprias relações intraespecíficas, que dirá para os demais elos dessa intrincada cadeia de serviços ecossistêmicos. Que se dane o 1.0 à minha frente no limite de velocidade da via, que se dane o bicho que pode cruzar a pista. Que se dane o planeta afinal, não?! Mesmo assim, angustiado e esperançoso, algumas perguntas não se calam em mim: Que teu Deus é esse que te prevê os 200 m cegos após a curva? Que teu Deus é esse que permite que cerca de 40 mil pessoas percam a vida todos os anos, a maioria por pura imprudência? Longe de mim duvidar de sua crença, caro leitor, essas são só questões para reflexões. Se for o caso desconsidere-as. Minha esperança é que o indivíduo pense no outro, nada mais.

Só não dá pra desconsiderar que a natureza é parcimoniosa. A parcimônia é um dos principais princípios que explicam a diversidade de vida que temos no planeta que habitamos. Ela prediz que passos mais “econômicos” são os que potencialmente podem melhor explicar os eventos evolutivos. Acho isso sensacional, na biologia e na vida cotidiana mesmo. Por isso também acredito na parcimônia como uma espécie de metáfora, daquelas que tanto têm em livros históricos como a bíblia. Acredito na parcimônia resolvendo problemas de estresse, tão comuns e que reverberam no chamado ‘mal do século’ – as depressões e afins. Imagine aí que tudo pode se resolver com um ‘Hakuna Matata’, ou simplesmente só deixando que as coisas aconteçam por si (favor não confundir com falta de proatividade). Se você imagina e se imagina fazendo, parabéns! Você pode ser salvo dos efeitos colaterais do consumismo capitalista. Como dizia outro professor (aulas de estatística na pós eu não tenho saudades...) “o mais simples é o mais elegante [...] o resto é pura perfumaria!”.

Pra finalizar esse artigo de opinião com fortes tendências sociais e biológicas: por esses motivos creio que a natureza humana não está sendo parcimoniosa. Mais consumo, mais velocidade, mais, mais e mais... Mais, para mim, só for matas. Inclusive nós aqui no Piauí somos privilegiados, pois ainda temos muita mata preservada. Somos a última fronteira agrícola nos ecossistemas ecotonais adjacentes ao Cerrado norte. Cuidemos para nosso bem viver. O homem se fez ao sentir as coisas que julgamos maravilhosas e por isso se tornou um bicho maravilhoso, mas se desfaz a cada dia trilhando caminhos que chamo de antiparcimoniosos. Adianta ir pra igreja rezar e fazer tudo errado? Adianta ter tatuagem na bunda com ditos sagrados e espetar com o tridente do capiroto o outro por pura empáfia? Tempos sombrios sempre existiram, só não sei se dessa maneira o bicho Homo vai se sair bem. Tomara que esteja errado: o Antropoceno está aí para nos responder.

Para mais informações sobre Antropoceno:

Antropoceno. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropoceno Acesso em 20 de agosto de 2019.

Ellis, C. J., Yahr, R., Coppins, B. J. Quantifying the anthropocene loss of bioindicators for an early industrial region: an equitable baseline for biodiversity restoration. Biodiversity and Conservation, 27: 2363-2377. 2018.

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