Arquivo Pessoal

Chico Mário Feitosa

Biólogo, doutor em Ecologia e Recursos Naturais, professor da UNIVASF São Raimundo Nonato e cantor nas horas vagas.

Doce invasão - uma revisitação

Peixes de água doce

A espécie humana (Homo sapiens) surgiu há cerca de 140 mil anos (Foley, 2003) mas somente muito depois (12 mil anos) as populações se estabeleceram em locais fixos (Lewin, 1999). Assim, a espécie antes considerada nômade passou a se fixar em lugares em virtude de comportamentos sociais evoluídos que o ajudaram na obtenção dos recursos necessários à sobrevivência de seus indivíduos. Temos aqui um hiato temporal: não é muito fácil entender que os ancestrais tinham que ‘bater perna’ para suprir suas necessidades alimentares – daí vem o termo caçador-coletor conferido aos primeiros representantes da espécie, ou até mesmo carniceiro (Lewin, 1999) – e só muito depois os humanos criaram e desenvolveram ferramentas para facilitar suas vidas, o que acabou por fixar de vez as populações em locais estratégicos frente à disponibilidade de recursos e o ciclo vital dos indivíduos.

Mesmo antes disso, quando nossos ancestrais ainda eram nômades (e por isso cosmopolitas) sempre tivemos o hábito de levar e trazer coisas as quais precisamos. Dentre elas, as plantas e animais têm presença marcante e lugar de destaque, pois garantem a sobrevivência por facilitar a obtenção de recursos alimentares. E é justamente por isso que hoje dominamos com grande destreza a cultura de um sem número de plantas e animais, que para muitas populações são a base alimentar e ou cultural (hoje comercial).

Pelo preambulo acima exposto, sugere-se que somos um fator biótico alterador em potencial, o que refletiria diretamente em mudanças significativas nos ecossistemas e na biosfera. No entanto, esse não é o intuito desse artigo, tendo em vista que o H. sapiens é um elemento natural e por isso também causa impactos (atualmente e notadamente mais negativos que positivos – vide Antropoceno). Esse artigo também não pretende fazer um levantamento histórico, de como se deu a distribuição de algumas plantas e animais através das mãos do homem. Até porque isso se confundiria com a maneira complexa na qual o próprio homem chegou aos quatro cantos do mundo.

Dito isto, o que se pretende aqui é revisitar o tema e ressaltar de maneira mais aprofundada alguns problemas ecológicos locais, originados do descuidado do homem com o seu ambiente e elementos naturais, principalmente quanto à introdução de espécies. O comportamento nômade ainda continua em nós (inclusive encravado nos genes) e por isso a utilidade das coisas (entenda-se aqui plantas e animais) se tornou um assunto de interesse global desde os primórdios. E hoje é só olhar para a soja (Glycine max) para perceber facilmente o quanto essa commoditie é importante em termos mundiais; esse é um exemplo notório pois sua origem é chinesa e hoje os maiores produtores são Brasil e Estados Unidos. Para quem estes vendem soja? Não sejamos redundantes, ora bolas.

Na biologia, chamamos essas espécies de ‘exóticas’ ou ‘alienígenas’, diferente do termo ‘invasora’ que como o próprio nome sugere tem um poder cosmopolita muito além do efetivado pela mão humana. De qualquer forma, são termos que designam a origem regional de espécies e que está condicionada a diferentes escalas, sendo a maior definida como Regiões Biogeográficas (Figura 1). Em suma, espécies exóticas são organismos de outras regiões do planeta (totalmente diferentes ou não em termos climáticos) presentes numa determinada área geográfica. Por isso, elas podem ou não ser adaptadas ao novo local e de alguma forma influenciarem na dinâmica natural através da competição por recursos locais.

Foto: Mello et al. (2012)Regiões Biogeográficas da Terra
Figura 1. Regiões Biogeográficas da Terra.

Digo tudo isso para chamar atenção de um problema considerado muito grave e que envolve uma espécie de peixe amazônico e a bacia do rio Parnaíba. O tucunaré (Cichla sp., Figura 2) foi há algum tempo introduzido no Nordeste brasileiro sob o pretexto de incremento da produção pesqueira. O primeiro caso conhecido no sul do Piauí ocorreu no município de Rio Grande do Piauí, onde um então administrador local resolveu soltar no final do século passado alevinos desse peixe na lagoa da cidade para que houvesse aumento no produto da pesca local. Mal sabia ele que os peixes nativos correriam um sério risco pois o problema está na relação ecológica que esse peixe tem com os demais, o que poderia em médio prazo desestruturar toda a comunidade de peixes (em outras palavras, devorar todos eles).

Foto: Feitosa, 2019Cichla sp. capturado no rio Parnaíba, região de Floriano, PI.
Figura 2. Cichla sp. capturado no rio Parnaíba, região de Floriano, PI.

O fato é que nunca mais se ouviu falar do tal peixe na lagoa de Rio Grande do Piauí, nem tampouco das consequências. Inclusive em pescaria no ano de 2018 o dito cujo não foi encontrado. Entretanto, em outros lagos na bacia do rio Parnaíba (nesse caso os artificiais, conhecidos como barragens) a espécie parece ter encontrado um hábitat perfeito para o crescimento e manutenção de sua população. Como a espécie tem hábitos lênticos, ou seja, prefere ambientes de água parada, tem sido capturada constantemente na barragem de Boa Esperança e com menor frequência à jusante nos arredores do município de Floriano (Figura 3). Outro exemplo vêm da cidade de São Raimundo Nonato (Figura 4), onde o tucunaré se tornou comum na barragem Petrônio Portela desde o ano de 2018, quando pela primeira vez se teve notícia de sua presença. Nesse passo falta pouco para que o tucunaré chegue à barragem do Jenipapo, em São João do Piauí, logo à jusante de Petrônio Portela e onde segundo os pescadores locais esse peixe ainda não está presente.

Foto: Feitosa, 2019Cichla sp. capturado no riacho Caldeirões, afluente do rio Parnaíba na região de Floriano entre 2015 e 2016. Imagens gentilmente cedidas por Mendes, A.O.
Figura 3. Cichla sp. capturado no riacho Caldeirões, afluente do rio Parnaíba na região de Floriano entre 2015 e 2016. Imagens gentilmente cedidas por Mendes, A.O.

Foto: Feitosa, 2019Cichla sp. capturado na Barragem Petrônio Portela em São Raimundo Nonato, PI.
Figura 4. Cichla sp. capturado na Barragem Petrônio Portela em São Raimundo Nonato, PI.

A pergunta central aqui sobre esse bicho é como ele pode alterar a comunidade biótica de um ambiente aquático? A resposta é complexa porém preocupante, pois o tucunaré é um voraz devorador de outros peixes, inclusive com tendências canibalistas. Uma prova disso foi o que aconteceu no Lago Gatún (Panamá) onde ele também foi introduzido: pouco tempo depois não existia nem se quer o próprio tucunaré (Futuyma, 2002). Por isso, é preocupante saber que existe um risco potencial para a fauna nativa de peixes do rio Parnaíba. Também, isso mostra que as “boas intensões” de gestores locais podem estar travestidas de tragédias anunciadas quando não se tem competência para tais atos. Como diz o ditado “de boas intensões o inferno tá cheio”. Coincidência ou não, o fato é que segundo os pescadores e demais ribeirinhos do rio Parnaíba, o produto da pesca tem diminuído ano após ano. Embora de maneira empírica, essa informação já é um bom “termômetro ambiental” para aferir a qualidade dos ecossistemas. Por isso fiquemos atentos.

Outro exemplo emblemático aconteceu no Lago Vitória (África), com um parente muito próximo do tucunaré. A Perca-do-Nilo (Lates niloticus, Figura 5) dizimou uma das faunas de peixes de água doce mais ricas e exuberantes do mundo, tudo por culpa da brilhante ideia de alguém que também tinha a intensão de aumentar o produto da pesca no lago. Esse exemplo foi literalmente um tiro no pé, pois a carne do bicho nem é tão apreciada pelos habitantes locais; além disso, muita lenha era utilizada como matriz energética para defumar a carne da perca, pois a mesma é bastante oleosa e só através desse processo sua conservação poderia ser efetivada. Dois coelhos com uma cajadada só: prejuízos no ambiente aquático e no terrestre adjacente, através do desmatamento.

Foto: Sousa, 2019Perca do Nilo (Lates niloticus)
Figura 5. Perca-do-Nilo (Lates niloticus)

Voltando ao rio Parnaíba, pelo menos cinco espécies de médio a grande porte (sem contar com o tucunaré) são consideradas exóticas (Ramos, 2012; Ramos et al. 2014), sendo três originárias da Amazônia (Cará preto – Astronotus ocellatus, Pirarucu – Arapaima gigas e Tambaqui – Colossoma macropomum), uma da África (Tilápia – Oreochromis niloticus) e outra da bacia do Paraguai-Paraná (Piau-amarelo – Leporinus sp.). Olhando com um pouco de cautela, temos nessa lista mais dois peixes com hábito alimentar piscívoro (que se alimentam de peixes) e três onívoros (que consomem itens de origem animal e vegetal) o que configura um quadro preocupante para as mais de 50 espécies endêmicas da bacia do rio Parnaíba (Ramos et al. 2014).

É preocupante por vários motivos, mas vamos focar no mais óbvio: predação. As espécies nativas evoluíram a partir de outras Histórias de Vida e portanto podem não ter estratégias de defesa contra novos predadores. O alento para essa situação está no parentesco entre as faunas de peixes do Nordeste, Amazônia e Paraná-Paraguai: a torcida é para que os instintos de sobrevivência sobressaiam nas nativas. Certamente já existe uma diminuição drástica de suas populações, mesmo assim a esperança é que elas consigam dessa forma evitar processos de extinções locais. Entretanto o desafio é muito grande já que do outro lado do ringue estão algumas das predadoras mais adaptadas e estratégicas da América do Sul. De qualquer forma, o prejuízo já está concretizado: a flutuação nos números de abundância relativa de cada espécie certamente fará o trilho evolutivo seguir numa nova direção.

Para dar parágrafos finais ao artigo, segue recado para os tomadores de decisão do país, nas figuras dos senhores ministros da Educação, do Meio Ambiente e presidente da República, além dos demais simpatizantes: antes que o pior aconteça, são necessárias medidas mitigadoras para diminuição das populações de predadores exóticos e isso só se faz com investigação científica! Dificilmente conseguiremos extinguir localmente as espécies exóticas, mas em alguns lugares o controle biológico tem sido efetivado com eventos de pesca seletiva (o que não parece ser o caso no Parnaíba) ou através da introdução de outra espécie, que pode ser competidora ou predadora. Entretanto a história das introduções biológicas tem nos mostrado que esse caminho é muito perigoso, principalmente quando a espécie controladora vira o problema da vez a ser enfrentado.

Pelo exposto conclui-se que é necessário e urgente que se iniciem discussões sobre o assunto com especialistas. Mas ao que tudo indica, as IFES não terão verbas para pagar contas de água, energia e internet, que dirá para organização de eventos científicos? De todo modo, entende-se que a socialização de experiências bem sucedidas pode nos ajudar a encontrar mecanismos viáveis para a resolução deste problema. Como vimos, o empirismo pode ser muito útil mas seríamos grosseiramente imbecis se permanecêssemos eternamente na base do método tentativa-e-erro. O erro é nosso e a escolha por fazer o certo também. Agora, se a nossa casa pode ser vendida como commoditie aí então a discussão é outra.

Literatura citada:

Foley, R. Os humanos antes da humanidade: uma perspectiva evolucionista (Tradução de Patrícia Zimbers). São Paulo: Editora UNESP, 2003.

Futuyma, D. J. Biologia Evolutiva. 2ª Ed. Ribeirão Preto: Funpec, 2002.

Lewin, R. Evolução humana (Tradução de Danusa Munford). São Paulo: Atheneu Editora, 1999.

Ramos, T. P. A. Ictiofauna de Água Doce da Bacia do Rio Parnaíba. Tese de doutorado. João Pessoa, PB: UFPB, 2012.

Ramos, T. P. A., Ramos, R. T. C. & Ramos, S. A. Q. A. Ichthyofauna of the Parnaíba River Basin, Northeastern Brazil. Biota Neotropica, 14(1): 1-8. 2014.

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